A adoção de metodologias ágeis, como o Scrum, trouxe consigo a ideia de que o Product Owner (PO) seria uma figura estratégica, responsável por maximizar o valor do produto e garantir que as soluções desenvolvidas estejam alinhadas às necessidades do mercado e dos usuários. Entretanto, na prática, muitas empresas acabam reduzindo esse papel a um trabalho meramente operacional, em que o PO atua apenas como um “tomador de pedidos” ou “escrivão de requisitos”, sem espaço para influenciar decisões de negócio. Pior ainda, em certos ambientes, a liderança não apenas rejeita mudanças, mas consolida um modelo de controle top-down, onde a “visão” dos executivos prevalece sobre qualquer análise ou feedback de clientes. O resultado é um cenário de estagnação, frustração para quem exerce a função de PO e uma cultura organizacional que ignora potenciais benefícios de uma abordagem verdadeiramente ágil.
1. O Papel do PO na Teoria x Realidade Organizacional
No Scrum, o Product Owner é descrito como o guardião do Product Backlog e a pessoa que define prioridades com base em valor de negócio. Ele teria a responsabilidade de representar os interesses dos clientes e stakeholders, trazer clareza sobre o que deve ser desenvolvido a cada Sprint e, principalmente, conectar a estratégia da organização às entregas do time de desenvolvimento. Esse conceito, no entanto, depende de autonomia, embasamento em dados e um ambiente que incentive a experimentação.
Em organizações resistentes a práticas ágeis, essa autonomia simplesmente não existe. O PO se torna um elo de transmissão entre a alta gestão — que define o que deve ser feito, muitas vezes sem validações profundas — e o time técnico, que executa. A análise de mercado e a coleta de feedback direto do usuário perdem espaço para decisões centralizadas em lideranças com pouca ou nenhuma proximidade com o cliente. Desse modo, o PO praticamente não consegue exercer seu papel estratégico, pois a empresa não deseja mudar seus processos, nem compartilhar o poder decisório.
2. Por que as Organizações Resistem à Mudança?
Diversos fatores explicam por que determinadas empresas não querem uma transformação genuinamente ágil, ainda que usem o nome “Scrum” ou “Kanban” em seus processos. Em primeiro lugar, há questões culturais: se a companhia tem um histórico de decisões unilaterais vindas da alta liderança e uma estrutura extremamente hierárquica, implementar conceitos como “colaboração” e “auto-organização” pode ser encarado como um risco ou até mesmo como subversão do status quo.
Além disso, há o medo de perder controle. Práticas ágeis pressupõem certa abertura para errar cedo, aprender com isso e ajustar o rumo. Líderes que baseiam sua imagem na infalibilidade não aceitam um modelo onde o time possa validar ou refutar ideias com base em experimentos e feedback real. Para eles, o caminho mais confortável é manter tudo sob controle de um pequeno grupo de executivos que “sabem o que é melhor” para o produto, independentemente de dados ou voz do usuário.
3. A Frustração do Product Owner “Executivo de Tarefas”
Quando a organização não abre espaço para mudanças, e o PO se vê obrigado a atuar apenas de forma operacional, surgem consequências diretas em termos de motivação, desenvolvimento profissional e até saúde mental. A pessoa que ocupa o cargo de PO, quando bem capacitada, normalmente deseja contribuir com análises de negócio, mapeamento de requisitos reais, validação de hipóteses e construção de valor para o usuário. No entanto, nesse modelo rígido, todo esse potencial é sufocado.
Essa frustração se aprofunda quando o PO percebe que, apesar de se falar em “agilidade”, a empresa não está interessada em feedback ou ajustes de rota. O papel se torna repetitivo: recebe-se uma lista de demandas vinda de cima, registra-se em um backlog e passa-se adiante para o time. Quando se tenta propor algo diferente — por exemplo, rodar uma entrevista com clientes ou conduzir um teste A/B —, muitas vezes encontra-se resistência ou desdém por parte de gestores que não enxergam valor nessas iniciativas. Assim, o profissional sente que está desperdiçando seu conhecimento e que seu cargo não corresponde à descrição de um verdadeiro PO.
4. Efeitos no Produto e no Negócio
Embora a falta de abertura para mudanças possa parecer algo que só afeta o clima interno e a satisfação de quem desempenha a função, há também impactos diretos na qualidade do produto e nos resultados do negócio. Ao ignorar análises de mercado, feedback de usuários e validações frequentes, a empresa corre o risco de investir tempo e recursos em funcionalidades que podem não ter aderência ou relevância. Esse tipo de abordagem aumenta o retrabalho e diminui a competitividade do software, pois há um distanciamento real das dores do cliente.
Muitas vezes, a liderança acredita que sua visão, por si só, basta para definir o que deve ser desenvolvido. Essa convicção pode até funcionar em alguns poucos casos, mas costuma ser insustentável em mercados dinâmicos, onde concorrentes inovam rapidamente e os clientes têm cada vez menos paciência para soluções que não resolvem efetivamente seus problemas. No longo prazo, a falta de agilidade pode levar a atrasos, custos altos e resultados abaixo do esperado.
5. Por que Mesmo Falando de Agilidade, Muitas Empresas Não São Ágeis?
Existe um discurso cada vez mais presente no mercado sobre adoção de metodologias ágeis e transformação digital. Entretanto, o que se vê na prática são muitas empresas vestindo uma “máscara de agilidade”: elas realizam cerimônias como planning, daily e review, mas toda a essência permanece presa a um modelo de comando e controle. O Product Owner, nesse contexto, torna-se uma peça decorativa que não decide e não influencia no produto.
Essa dissonância entre discurso e prática surge porque a adoção de agilidade real exige uma mudança cultural profunda: descentralizar decisões, aceitar iterar e errar, colocar o cliente no centro. Se a alta gestão não está disposta a passar por esse processo (que pode abalar estruturas de poder), é natural que a implantação se limite a ritos superficiais. Assim, as empresas continuam com o mesmo modo de trabalho de sempre, mas agora com nomes novos para os papéis e processos.
6. Aceitação do Contexto e Possíveis Pequenos Movimentos
Quando não há abertura alguma para mudança, o primeiro passo é aceitar que, no curto prazo, não há muito a fazer. Lutar diariamente contra a cultura pode gerar estresse e desgastes, sem qualquer resultado positivo. Porém, isso não significa que o profissional de PO deva simplesmente desistir de aprimorar seu trabalho. Pequenas ações internas, mesmo que discretas, podem fazer diferença no longo prazo. Alguns exemplos incluem:
- Aprimorar a Documentação de Requisitos: Embora a liderança não valorize tanto a visão de negócio, você pode deixar o trabalho bem organizado e claro para o time, reduzindo ruídos de comunicação.
- Manter-se Atualizado em Práticas de Produto: Seguir estudando, participando de comunidades de produto e trocando experiências com quem atua em empresas mais avançadas em agilidade.
- Criar Relacionamento com Outros Departamentos: Mesmo que a organização não seja aberta a mudanças, há setores que podem se interessar por dados e feedback de clientes, como Marketing ou Atendimento ao Cliente. Parcerias informais podem trazer pequenos aprendizados.
- Fazer Microtestes ou Pesquisas Informais: Em vez de grandes experimentos, realizar conversas pontuais com usuários ou stakeholders para entender melhor o contexto. Esses pequenos insights podem servir de base para discussões futuras.
Essas ações não resolvem a raiz do problema — a falta de abertura e a cultura top-down — mas podem manter o PO engajado e preparado para eventuais brechas que surjam no futuro.
7. A Saúde Mental e a Motivação do PO
É fundamental que o profissional de PO tenha clareza de que não é responsável pela cultura da empresa. Muitas vezes, a pessoa se sente culpada ou incompetente por não conseguir “convencer” a liderança a mudar, mas essa é uma questão estrutural. Em certos ambientes, a melhor estratégia para manter a saúde mental é entregar o que se espera e, aos poucos, tentar pequenos avanços, sem se desgastar em batalhas que estão fadadas ao fracasso.
Algumas técnicas podem ajudar a lidar com o estresse e a frustração de não poder exercer o papel plenamente. Criar um grupo de apoio ou participar de redes profissionais para trocar experiências é uma boa forma de perceber que não se está sozinho nesse cenário. Também é importante reservar momentos de descanso, lazer e práticas que aliviem a tensão. Afinal, não há nada de errado em seguir trabalhando dentro das limitações enquanto não surgem oportunidades melhores.
8. Ficar ou Mudar de Ambiente?
Uma reflexão inevitável para o Product Owner que vive nesse cenário é: vale a pena continuar na empresa? A resposta depende de diversos fatores, como necessidades financeiras, estabilidade, perspectivas de crescimento e alinhamento com objetivos de vida. Em alguns casos, pode ser estratégico ficar, aprender o máximo possível e aguardar uma chance de mostrar o valor de uma abordagem mais orientada ao cliente. Em outros, a melhor decisão pode ser buscar um ambiente mais receptivo, que realmente dê espaço para o PO atuar de forma estratégica.
Não há uma resposta universal. O importante é que o profissional se mantenha ciente das opções. Por vezes, mudar de empresa é visto como radical, mas se a frustração está alta e não há perspectivas de evolução, pode ser o caminho mais saudável — tanto para o crescimento profissional quanto para o bem-estar pessoal.
9. O Futuro: Pequenas Sementes de Mudança?
Embora o contexto atual seja de resistência total, o mercado vem evoluindo e reconhecendo a importância de um Product Owner ou Product Manager de fato empoderado e orientado por dados. É possível que, mais cedo ou mais tarde, a própria organização enfrente problemas no produto (queda de vendas, reclamações de clientes, atraso perante a concorrência), o que a forçará a rever processos. Nesses momentos de crise, quem tem preparo e já domina práticas de descoberta e validação costuma se destacar, pois carrega métodos que podem mitigar riscos e redirecionar o produto para o sucesso.
Portanto, mesmo que hoje não haja espaço para o PO exercer plenamente seu papel, manter o desenvolvimento contínuo de habilidades de análise de negócio, UX, métricas de produto e técnicas de discovery pode ser um diferencial. No dia em que a empresa se der conta de que precisa fazer algo diferente, quem já possui esse repertório estará bem posicionado para liderar ou participar da transformação.
10. Conclusão
Quando o papel do Product Owner fica restrito a um executor de tarefas e a liderança não se mostra disposta a revisitar sua forma de gerir o produto, vive-se uma situação de profunda desalinhamento entre teoria e prática. Não há uma solução simples para esse dilema, pois a chave para uma real transformação passa pela mudança de cultura, pela disposição de abrir mão de um controle absoluto e pela adoção de um mindset orientado a valor e aprendizado.
Enquanto isso, resta ao profissional de PO escolher se segue atuando nesse contexto — buscando, ainda que de forma sutil, manter boas práticas em seu dia a dia — ou se explora novas oportunidades em ambientes mais compatíveis com o papel estratégico que o mercado e os livros pregam sobre o Product Owner. Em todo caso, é essencial lembrar que não se pode controlar a vontade de mudança da empresa, mas é possível controlar o próprio desenvolvimento profissional, a forma de lidar com as dificuldades e a busca por espaços onde a contribuição possa ser plenamente reconhecida e valorizada.
Quer saber mais me procure para fazer mentoria.
Use Icebreak para mudar seu contexto.
Compre o Livro de Métricas do Scrum
Conheça o Fórmula Ágil. www.formulaagil.com.br
- O Caos é uma Escolha: Como Bloquear o Fluxo no Jira Transforma a Gestão Ágil
- Livros Andre Molero
- O segredo sombrio por trás dos templates de dashboards que NINGUÉM te conta.
- Team Building para Céticos: Estratégias Persuasivas para Engajar sua Equipe
- Como fazer Backlog e Roadmap no Jira GRÁTIS! Guia Completo